Temos ouvido discussões sobre a palavra privilégio entre pessoas negras há algum tempo, o que faz conectá-la às questões de racismo, mas o termo vai além desse âmbito. Ter privilégios é em algum momento estar com grande vantagem sobre outras pessoas. Aqui, vários marcadores sociais podem te colocar nesse lugar, como sua cor de pele, seu ‘status’ social, seu CEP e até mesmo seu gênero.
Em um grupo no qual estava fazendo uma interação para falar sobre inclusão e diversidade, um executivo perguntou por que eu nunca saí de um trabalho no qual uma das barreiras à minha evolução era o racismo.
Alguns que estão lendo esse artigo talvez saibam que sou da região da Zona Leste de São Paulo, tenho dois filhos e sempre precisei estudar e trabalhar. Com isso, sempre enfrentei deslocamentos por horas para longe de casa, pois os melhores salários geralmente estão do outro lado da ponte.
Nesse período, o meu filho mais velho era pequeno, eu levava três horas para chegar ao trabalho, saía direto para a faculdade, me deslocando por mais duas horas, e depois levava mais duas horas para chegar em casa. A gestão deixava um celular comigo e não havia horário para atender, porque respondia pelos atendimentos aos clientes para garantir o SLA dos contratos.
Foi um lugar onde aprendi muito, conheci pessoas incríveis, fiz cursos, viajei, fui a única mulher negra durante todo o tempo em que estive ali, e só consegui contratar um homem negro. O salário era bom, mas todas as pessoas que entravam começavam recebendo mais do que eu, afinal os nomes dos cargos justificavam isso.
Enquanto os jovens contratados compravam carros e saíam para a balada, eu procurava manter as contas em dia para poder cuidar das minhas responsabilidades.
Trago essa parte da minha história para mostrar que o meu movimento foi consciente, almejava ter uma chance de melhorar de vida e estar em um lugar repleto de oportunidades era uma chance de ser escolhida, o que nunca aconteceu.
O querido Marco Pellegrini retratou uma experiência similar em sua fala no 9º Fórum Inclusão Diversidade da ABRH-SP, na mesa sobre “Como promover uma sociedade mais inclusiva e acessível”:
“…na ETE Lauro Gomes eu sofri talvez a mais importante e mais decisiva pra mim, discriminação,… eu era o único aluno negro… as empresas buscavam os alunos ali e eu não fui buscado, apesar de ter boas notas, de ter bom desempenho, apesar de eu ter me formado na mesma forma que todo mundo, eu não fui escolhido…” – v. 1:56:22 do vídeo (https://youtu.be/TuSZJ9iUUEw).
Sim, o privilégio de outros estudantes não negros, de educadores, de gestores, de colegas, sobre nossos caminhos no ambiente corporativo e nas oportunidades de acesso fica nítido conforme avançamos na carreira e nossos esforços sempre são maiores, para conseguirmos menos.
Hoje, como coordenadora de um programa para promover diversidade e inclusão, percebo que, para um executivo perguntar a uma mulher negra por que ela não se “libertou” de uma situação opressora, a expectativa é aumentar seu entendimento sobre uma realidade que ele nunca irá viver. Eu sofro várias opressões, entre elas a de gênero, étnica e social, algo que ele desconhece. Mas, ao saber sobre isso, o que irá mudar para ele? E para mim?
Se as pessoas que lerem este artigo não saírem de seus lugares privilegiados para apoiar outras mulheres negras, para que elas não precisem passar pelo que passei, haverá uma exposição desnecessária, de uma dor que ainda dói.
A mudança está nas mãos das empresas, sim!
Elas podem escolher se instalar em avenidas chiques nos centros financeiros e criar polos de trabalho nas periferias, podem contratar com exigência das universidades consideradas A pelo MEC ou podem atrair talentos que estudam pelo EAD nos UniCEUs. Podem, ainda, levar em conta que uma mãe com filhos pequenos precisa de escolas e creches de período integral, porque o Conselho Tutelar as ameaça quando precisam deixá-los sozinhos para garantir o alimento de cada dia, entre tantas outras ações que estão “subentendidas” na pergunta feita por um executivo de sucesso a uma mulher negra que há anos atua para crescer com os ganhos, um terço menores que os dele, no mínimo.
Quando falamos de privilégio, é difícil para quem está na área superior olhar quem está mais abaixo. Há alguns filmes que retratam isso de forma muito direta, como “Parasita”, de Bong Joon Ho; “O poço”, de Galder Gaztelu-Urrutia; e “Querô, uma reportagem maldita”, de Plínio Marcos. Reconhecer seu privilégio é o primeiro passo para mudar a realidade que nos cerca. No entanto, na pergunta c – há toda uma estrutura de privilégios – e só faz sentido se quem pergunta é capaz de fornecer oportunidades para que a história seja diferente. No mais, vira uma vitrine para conhecer as dores do outro, como no filme “A Vênus Negra”, de Abdellatif Kechiche, onde até o corpo morto da mulher negra é visto como material para consumo, só uma mercadoria, sem nenhum privilégio.